A outra viagem  


Romance até então inédito e escrito em francês, “No Caminho”, de Kerouac, dialoga intensamente com o clássico “On the Road’


MATHILDE GÉRARD
Sur le Chemin” [No Caminho] não é uma tradução nova de “On the Road”, de Jack Kerouac, mas um romance inédito do escritor ícone da geração beat, escrito em francês em 1952, quando o autor vivia no México. O jornalista canadense Gabriel Anctil descobriu o livro recentemente ao vasculhar os arquivos de bibliotecas nova-iorquinas, e o jornal “Le Devoir”, de Montréal, publicou alguns primeiros trechos. Leia abaixo entrevista com Anctil.

 

PERGUNTA – Como descobriu “No Caminho”?
GABRIEL ANCTIL
– Tínhamos alguns indícios de que ele havia escrito em francês, mas nenhuma prova concreta. Por isso passei um pente fino em seus manuscritos em Nova York. Um ano atrás, trouxe à tona um primeiro romance em francês: “La Nuit Est Ma Femme” [A Noite É Minha Mulher]. É um texto cuja existência era conhecida, mas nunca havia sido lido, pois não apenas foi escrito em francês, mas em “joual”, a língua popular do Québec. Quando descobri “A Noite É Minha Mulher”, percebi que Kerouac manejava o francês melhor do que ele mesmo imaginava. Quanto a “No Caminho”, é um texto de cuja existência ninguém desconfiava.

PERGUNTA – Como se explica que tenham passado despercebidos por mais de 50 anos?
ANCTIL
– É preciso retornar às raízes quebequenses de Kerouac. Seu pai e sua mãe nasceram no Québec, mas emigraram ainda muito jovens, como quase 1 milhão de outros quebequenses. Kerouac nasceu em Lowell, Massachusetts, cidadezinha da qual um quarto da população era originária do Québec e falava francês. Eram operários e trabalhadores agrícolas de pouca instrução, e o francês que falavam não correspondia às normas do francês internacional. Assim, um enorme complexo se desenvolveu com relação a essa língua. Em uma carta, disse estar convencido de que teria que traduzir esses textos para o inglês. Foi o que fez, aliás, tanto que “No Caminho” se tornou “Old Bull in the Bowery” em inglês, que também continua inédito até hoje.

PERGUNTA – Apesar desse complexo em relação ao francês, o que motivou Kerouac a escrever esses dois romances primeiramente nessa língua, antes de vertê-los ao inglês?
ANCTIL
– Kerouac só aprendeu o inglês aos seis anos de idade, quando entrou na escola. Em carta escrita em 1950 a uma crítica literária franco-americana, explicou que as idéias lhe vinham primeiro em francês e que, em seguida, eles as traduzia ao inglês por escrito. Assim, muitas de suas frases em inglês são construídas como frases francesas. “No Caminho” foi escrito algum tempo depois da primeira versão de “On the Road”, produzida em três semanas, em 1951. Em 1953, ele retrabalhou o manuscrito de “On the Road”. O fato de passar pelo francês o ajudou a escrever em inglês, portanto.

PERGUNTA – “No Caminho” e “On the Road” são duas obras distintas, embora escritas em paralelo. O que as une?
ANCTIL
– “No Caminho” faz parte do processo criativo que culminou com a redação de “On the Road”. São duas histórias diferentes, mas cujos personagens se reencontram de um texto a outro, em idades diferentes. Em “No Caminho”, Ti-Jean, que é o próprio Kerouac, tem 13 anos. Ele encontra um menino de Denver, Dean Pomeray, que representa Neal Cassady, o amigo de Kerouac que lhe inspirou o personagem Dean Moriarty em “On the Road”. As temáticas se entrecruzam, especialmente aquela da viagem.

PERGUNTA – E o que dizer da semelhança entre os títulos?
ANCTIL
– Sobre esse ponto, Kerouac contradisse os tradutores franceses. Este manuscrito nos indica que Kerouac, em seu francês, não teria traduzido “On the Road” por “Sur la Route” [Na Estrada], mas por “Sur le Chemin” [No Caminho].

PERGUNTA – Que uso ele faz da língua francesa?
ANCTIL
– Ele reencontra no francês o mesmo processo de escrita que no inglês, ou seja, o desejo de reproduzir a realidade, logo, a linguagem oral. Em inglês, Kerouac juntava palavras, inventava outras ou mudava sua ortografia, para melhor reproduzir a linguagem falada nas ruas. Em francês, fazia a mesma coisa: usava expressões que se aproximavam da língua inglesa e misturava nesse meio o “joual”, mas também palavras que eram empregadas apenas na Nova Inglaterra e que não existiam no Québec. A isso é preciso acrescentar a genialidade de Kerouac. Sua linguagem é verdadeiramente única na literatura quebequense. Ela não se parece com nada que tenha sido feito até hoje.

A íntegra deste texto saiu no “Le Monde“.
Tradução de Clara Allain.